Autoria: C. Juca

espMuita confusão e preconceitos giram em torno do termo espiritualidade, acredito que isso se deve ao fato de ser utilizado por círculos sociais distintos e que na maioria das vezes não se comunicam abertamente para discutir o seu significado.

Vejo o universo anarquista como majoritariamente ateu e extremamente antipático a qualquer discussão mais aprofundada sobre religião. É exatamente esta aversão extrema à assuntos religiosos que faz com que a espiritualidade seja vista como algo diretamente relacionado a religiões e logo ridicularizada e prontamente descartada de qualquer estudo.

No documentário “A raiz de todo mal?”, Richard Dawkins entrevista cristãos e islâmicos a fim de mostrar como a fonte de diversos aspectos sociais negativos são construídos pelas religiões. O rigor científico de suas teses não parece ser uma ferramenta muito interessante quando o objetivo é um estudo sobre religiões. Como supor que a raiz de todo mal está nas religiões sem se quer dar um parecer sobre religiões que estão fora do contexto monoteísta (cristianismo/islamismo)? Por que Dawkins não realizou uma entrevista com algum/alguma monge/monja budista para o seu documentário? Será que é impossível ter uma visão crítica sobre questões sociais sem ter que apelar para conceitos demasiadamente simplificados e polarizados (ateísmo vs religiões)?

Existe uma infinidade de religiões no mundo, nem todas possuem lógicas próximas do cristianismo ou do islamismo, e algumas nem se quer conseguem ser definidas como religião. O budismo tem mais a ver com uma ciência que estuda a relação entre mente e matéria do que com qualquer religião teísta. Boa parte da base que apresentarei neste texto tem como origem algumas linhas filosóficas orientais e “religiões” esquecidas ou ignoradas pelo pensamento ocidental.

Espírito e Espiritualidade

A palavra espírito tem sua raiz etimológica do latim “spiritus”, significando “respiração” ou “sopro”, mas também pode referir-sepode a “alma”, “coragem”, “vigor” e, finalmente, fazer referência à sua raiz no idioma PIE *(s)peis- (“soprar”). Tendo em vista a raiz etimológica da palavra espírito, tratarei da espiritualidade explorando os diversos aspectos que rondam o “simples” ato de respirar.

Nossa cultura atém-se apenas ao aspecto funcional da respiração, existe uma evidente dificuldade em trazer para uma reflexão social diversas conclusões científicas do campo da fisiologia. A linha científica dominante defende a ideia de entendimento do todo através do estudo dos fragmentos, e isso acaba criando barreiras para a exploração da respiração dentro de uma perspectiva que possa criar impactos diretos à todos nós que respiramos. Qual é o impacto social da noção de que a respiração é responsável pela oxigenação do corpo? A própria ideia de estudo a partir de fragmentos monta uma armadilha que impossibilita uma reflexão sobre o assunto, já que desta primeira conclusão passa-se a buscar outros fragmentos relacionados ao papel do oxigênio no corpo e daí em diante muitos outros fragmentos surgirão, cada um criando uma especialidade.

Não estou dizendo que este tipo de conhecimento é descartável, pretendo explicar como a dominância de uma única metodologia científica faz com que percamos o “fio da meada”. Temos especialistas de todo tipo de fragmento, que não conseguem relacionar os conhecimentos que possuem com a realidade social em que vivem. E essa lógica serve muito bem a um sistema econômico que não pode parar, que não pode se dar ao luxo de ter uma população que reflita de forma aprofundada. A estrutura social que possibilita o surgimento do câncer pouco importa para os que estão nas pesquisas sobre a sua cura. Existem estudos de fragmentos que procuram dialogar com o todo, mas dentro do universo cientifico eles são muito raros e exigem uma imensa luta para não serem abafados pelas linhas dominantes de pesquisa.

O estudo organizado não é privilégio da cultura ocidental, para outras culturas a respiração é fonte de muitos estudos e reflexões. Yoga, artes marciais e técnicas de meditação possuem como ponto de partida, ou de chegada, a atenção à respiração. Diferentemente do estudo do fragmento que gera mais fragmentos, outras culturas procuraram sempre trazer o resultado de seus estudos para uma reflexão mais aprofundada e menos limitada, ao ponto de afetar diretamente a percepção de mundo do próprio estudioso, muitas vezes trazendo desconfortos e críticas radicais à sua própria vida.

Então seria esta reflexão aprofundada a tal espiritualidade? Porque a respiração é tida como a base da espiritualidade e não qualquer outra atividade?

Sobre a respiração

Praticamente todas as atividades fisiológicas humanas, seja ela de força, resistência ou alongamento, são limitadas ou potencializadas pelo hábito respiratório de cada indivíduo. Até mesmo o nosso cérebro é afetado por ela.

Me refiro ao processo respiratório como um hábito, pois pode assumir diversas características de acordo com o acumulo de vivência de cada indivíduo. Nossa postura corporal, o nosso andar, o nosso correr e praticamente toda atividade física é diretamente afetada pelo nosso hábito respiratório. Mas afinal, como adquirimos um determinado hábito de respiração?

Bem, é uma via complexa onde as condições psicológicas das relações sociais que nos cercam moldam nosso hábito respiratório que por fim trará consequências para o nosso corpo, assim como a nossa reação e decisões dentro destas relações sociais também definirão características da nossa respiração. Ambientes e relações hostis, repressivas e opressoras ou saudáveis e livres juntamente com a nossa adaptação a este meio, definirão o nosso hábito respiratório.

A respiração pode ser involuntária inconsciente (onde nem se quer notamos que estamos utilizando nossos pulmões por estarmos concentrados em outras coisas), involuntária consciente (onde notamos que estamos utilizando o pulmão e optamos por apenas observar o processo respiratório) ou voluntário (alteramos a respiração pelo controle do diafragma). A possibilidade de estar consciente ou inconsciente da respiração é o ponto de partida para algumas meditações e artes marciais.

Para a tradição budista a mente é incapaz de estar no momento presente por trabalhar com base em símbolos que sempre traduzirão passado ou futuro. É através da tentativa de “esvaziar” a mente dos pensamentos e do direcionamento da completa atenção na respiração que conseguiríamos estar no tempo presente, e este é o princípio do processo meditativo. As artes marciais com base no Zen Budismo também utilizam de um princípio parecido, porém mais complexo, por trabalharem com movimentos diretamente ligados à diferentes ritmos respiratórios dentro dos mais variados contextos.

Espírito, corpo e mente: espiritualidade com o fonte de autodisciplina

Supondo que coloque como objetivo acordar todos os dias às 4 horas da manhã para fazer alguma atividade física por conta própria. Como não está acostumad@ com este horário, ao acordar o seu corpo não se sentirá desperto e se der muito espaço para a mente ela “dirá”: “Humm, precisava mesmo ser tão cedo, não estou desperta, ainda tenho sono … se eu dormir mais uma hora, acho que estarei mais desperta e disposta, exagerei no horário”, e sabemos o que acontece daí em diante.

Neste caso, mente e corpo dominam o espírito, toda a estrutura social do capitalismo depende disso. A expressão espiritual está muitas vezes em ir contra os hábitos da mente e do corpo para realizar algo que havia determinado anteriormente e assim criar um novo hábito pessoal (e consequentemente respiratório), este é o potencial que a meditação e as artes marciais possuem.

Desta forma, as artes marciais objetivam criar um espírito forte para o praticante, é como entrar debaixo de uma cachoeira cuja água está com temperatura próxima de zero para fazer repetições de movimentos: se deixar a mente e o corpo dominarem tal prática com certeza desistirá no momento em que encostar na água ou passará mal pois o apego mental ao desconforto corporal impossibilitará uma respiração adequada fazendo com que o corpo não se adapte à situação e entre em colapso. Com muito tempo de treino numa arte marcial, o praticante passa a ter um espírito inabalável, onde qualquer situação extrema de perigo passa a ser encarada de forma calma e tranquila, deixando o desespero e o pânico (frutos do descontrole respiratório) sem qualquer presença.

Os perigos da espiritualidade sem uma integração com o corpo e mente

Muitas vezes é dificil tratar de um assunto como este pois estamos todas muito acostumadas à um pensamento dualista. Não estamos aqui para dizer que a espiritualidade se baseia em ignorar a mente e o corpo, muito pelo contrário, ela depende dos dois para existir de forma sadia.

Um fanático religioso, não possuiria um espírito forte? Sim, muito forte! É capaz de tudo pela religião e por suas crenças, jejuar por dias, passar por sacrifícios incríveis, etc. Porém, todos esses feitos são forjados por sua mente que vê a realidade de uma maneira fechada e imutável para então constituir um espírito praticamente inabalável. Este indivíduo tende a se tornar uma pessoa inflexível e imutável a partir do momento que determina acreditar cegamente numa religião.

Dentro destas mesmas tradições que trouxemos à tona para explicar a espiritualidade, existe a noção de equilíbrio. Mas novamente temos que nos expressar melhor para sair da visão dualista de nossa cultura, que enxerga o equilíbrio de forma estática.

Se equilibrar para andar numa corda bamba não consiste em ficar sempre com o centro de equilíbrio no meio na corda, mas sim oscilar entre os dois lados constantemente; quanto menor a distância entre os lados melhor o equilíbrio na corda, o centro exato entre os dois é apenas um ponto de passagem e nunca um fim em si mesmo. Da mesma forma o equilíbrio entre corpo, mente e espirito depende de uma oscilação constante entre todos eles.

Espiritualidade e a Arte da Guerra

A incapacidade de mudar um hábito é o que chamamos de vício. Nosso corpo e mente são vítimas constantes dos mais variados vícios e, tanto identificá-los, quanto erradicá-los, é algo que se mostra muito complicado em nossa sociedade. Como podemos afirmar que a maior de todas as guerras acontece dentro de nós mesmos? Supondo que existam duas guerras, uma interna e outra externa. Em qual delas você possuiria maior poder de controle sobre as variáveis envolvidas nas batalhas? Coloque como objetivo ficar sentado por uma hora sem se mover e limitando a sua atenção apenas à respiração. Desconforto, dores e devaneios mentais serão inevitáveis e o farão falhar no objetivo traçado; mesmo com a capacidade de controle total dos fatores envolvidos, você “perde” a batalha. Não existe sorte nem azar na guerra interna, é você com você mesmo e ninguém mais. Quanto mais pessoas enfrentarem a guerra interna, mais simples se tomará a guerra externa.

A arte da guerra para encontrara paz… um pensamento dualista é incapaz de entender isso, e por mais que eu escreva a respeito, isso só fará sentido através de sua própria experiência prática. Os termos são incapazes de traduzir a complexidade deste assunto e se apegar a eles é se perder nas armadilhas da mente; pensar a arte da guerra em termos de “vitória” ou “derrota” já é o fracasso em si. Traduzir o vazio do Zen ou o Tao em palavras é algo extremamente complicado pois não se encaixa no pensamento dualista ocidental. Não existe entendimento real sobre a espiritualidade no campo intelectual isolado, pode-se ler todos os livros disponíveis sobre meditação e artes marciais … não fará a mínima diferença se não praticar constantemente. Pensar é bem diferente de refletir, assim como inteligência é bem diferente de sabedoria.

Reflexões Finais

Já vi inúmeras vezes este assunto ser tratado como uma expressão pós-moderna e entendo o porque desta “acusação”. O capitalismo é capaz de esvaziar qualquer coisa para transformá-la em mais uma mercadoria, tanto meditações quanto artes marciais já sofreram diversas distorções; porém, ainda existem linhas tradicionais que resistiram a este processo de mercantilização e continuam vivas. São milhares de anos de acúmulo de saberes que estão cada dia mais próximos da extinção, práticas que nos possibilitam diminuir o ruído causado pelo excesso de informações e eliminar hábitos desnecessários que dificultam em muito um processo de mudança social. Se anarquistas levam a sério a necessidade de autodisciplina e autoconfiança, deveriam se empenhar mais para o resgate e fortalecimento desses conhecimentos tradicionais milenares.

As linhas tradicionais de meditação e artes marciais exigem do praticante uma dedicação diária e incessante, sempre buscando uma inserção das reflexões trazidas pela prática para o cotidiano. A ideia da impossibilidade de exercer completo domínio sobre a técnica e suas infinitas esferas, trabalha diretamente com a desconstrução do ego, que a meu ver é um dos grandes problemas que as organizações anarquistas enfrentam.

“Os homens fazem a sociedade tal como é, e a sociedade faz os homens tais como são, resultando disso um tipo de círculo vicioso: para transformar a sociedade é preciso transformar os homens, e para transformar os homens é preciso transformar a sociedade.” – Errico Malatesta