Um privilégio paradigmático
Existe hoje em dia um paradigma dominante, o neoliberalismo. Nas ciências humanas, ele possui diversos nomes: teoria da escolha racional, racionalidade instrumental, individualismo metodológico, utilitarismo, homo œconomicus, teoria econômica neoclássica. Esses diversos nomes designam aspectos diferentes do paradigma. Mas existe um núcleo comum a todas essas teorias: elas dizem respeito ao que circula, procuram explicar o sistema de produção e, sobretudo, de circulação das coisas e dos serviços na sociedade a partir das noções de interesse, de racionalidade, de utilidade.
Bastante modesta na época de Mandeville e de Adam Smith, essa teoria veio a ter, atualmente, um alcance impressionante, a ponto de o indivíduo moderno não ser mais capaz de pensar o que circula na sociedade sem partir dessas noções e desse modelo. Como afirma Abell (1992, p. 188), “a teoria da ação racional é a referência obrigatória, à qual são comparadas todas as outras teorias”, o que lhe confere o que ele chama de “privilégio paradigmático”. Isso significa, de um lado, que esse paradigma é considerado como um postulado, que se recorre espontaneamente a esse esquema explicativo para explicar o comportamento de um agente social; de outro, significa que nenhum outro postulado é legítimo como postulado e precisa, assim, ser demonstrado. É esse privilégio paradigmático que eu gostaria de colocar em questão nesta apresentação.
O que contém esse modelo? Existem inúmeras variantes. Duas noções são fundamentais, a de preferência e a de otimização. Segundo a primeira noção, o indivíduo age de acordo com suas preferências e é o único a saber quais são. Nesse paradigma, usa-se a palavra preferência para nomear o interesse, os valores, os fins, as necessidades, as paixões.1 Saber como o indivíduo determina suas preferências não é um problema para essa teoria, que se contenta em indagar como o indivíduo toma suas decisões uma vez conhecidas, determinadas, suas preferências.
A resposta a essa questão é a teoria da racionalidade instrumental, que tem a noção de otimização como conceito central. A racionalidade instrumental é uma racionalidade dos meios em relação aos fins que praticamente não se pronuncia quanto aos fins. A teoria da escolha racional
[…] contém um elemento que a diferencia de quase todas as outras posturas teóricas em Sociologia. Esse elemento pode ser resumido numa só palavra: otimização. Parte-se do princípio de que, ao agir racionalmente, o ator se envolve com algum tipo de otimização. Isso pode ser expresso como maximização do benefício, ou como minimização do custo, ou ainda de outros modos. Como quer que seja expresso, é isso que confere à teoria da escolha racional seu poder: ela compara ações em função de seus resultados esperados pelo ator e postula que este escolherá a ação com o melhor resultado. Em sua forma mais explícita, requer que benefícios e custos de todas as vias possíveis de ação sejam especificados, postulando então que o ator toma a atitude “otimizadora”, aquela que maximiza a diferença entre benefícios e custos. (Coleman e Fararo, 1992, p. XI)
Essa idéia de otimização se aplica aos níveis individual e coletivo, pois o modelo dohomo oeconomicusafirma que quando cada um otimiza seu interesse individual, os membros de uma sociedade produzem umoptimumde bem-estar coletivo.
Aspectos positivos
Os que se opõem a esse modelo tendem a desconsiderar o que o torna atraente, o que acaba enfraquecendo sua crítica.
O realismo da noção de interesse
É inegável que o interesse existe e desempenha um papel importante. Esse ponto de partida é um bom meio de não tomar os humanos por algo que eles não são, e é um bom mecanismo de proteção contra as utopias totalitárias. Assim, como não concordar com Koestler (1979, p. 88) quando ele escreve: “em toda a história, os danos causados por excessos de afirmação individual são quantitativamente irrisórios quando comparados às carnificinas organizadas por transcendência altruísta para a glória de uma bandeira, de um chefe, de uma fé ou de uma convicção política.”
Utopia sedutora
A idéia de que os interesses privados conduzem ao bem público, de que todos esses egoísmos são miraculosamente gerados pela mão invisível do mercado, de que basta ser egoísta para cumprir nosso dever para com a sociedade é inegavelmente capaz de seduzir. Pois ela significa que, para controlar as paixões, as desordens, e fazer funcionar a sociedade para a maior felicidade da maioria (Bentham), pode-se prescindir não apenas do chamado à virtude, como também do da autoridade, da tradição etc. Essa utopia exerce um fascínio particular no contexto da modernidade. Pois com essa idéia de soberania das preferências, neutra em relação aos fins, o mercado possui uma estrutura que contém um certo respeito pelos valores de cada um. Tal respeito é precioso na sociedade moderna, que não se situa mais num ambiente comunitário (gemeinschaft— Tonnies), mas num contexto em que o indivíduo é invadido por uma quantidade inacreditável de relações sociais, tão bem descritas por Simmel. O membro da sociedade moderna se vê às voltas com um número impressionante de instâncias, de pessoas, de instituições, de autoridades, que tentam lhe dizer quais deviam ser seus valores, suas preferências, que tentam lhe dizer o que é bom para ele. Costumam ser instâncias externas à sua comunidade, que ele tende a considerar ilegítimas. Essa recusa de se pronunciar quanto aos valores que o conceito de preferência envolve se adequa às sociedades pluralistas não comunitárias, nas quais, justamente, os valores e normas de cada um são muito diferentes.
A liberdade de se liberar
Dito de outro modo, e de modo mais geral, esse modelo nos libera das relações sociais indesejadas, inúmeras numa sociedade pluralista. Sem por isso nos impedir de obter o que desejamos do outro, mas sem nos envolvermos numa relação de longo prazo com ele. No contexto dessa ruptura do modelo comunitário, o que todos amamos espontaneamente no mercado é essa liberdade. É essa facilidade de sair de uma relação que não se aprecia, de ir procurar outra coisa. É oexit, conceito desenvolvido por Hirschman (1970).
Ausência de dívida
Como essa liberdade é possível? Em que se funda? Essa liberdade está fundada na liquidação imediata e permanente da dívida. O modelo mercante visa à ausência de dívida. Nesse modelo, cada troca é completa. Graças à lei da equivalência, cada relação é pontual, e não compromete o futuro. Não tem futuro, e portanto não nos insere num sistema de obrigações.
O que nos parece óbvio é, na verdade, algo inaudito. É nem mais nem menos que a invenção de um laço social inédito, como mostra Karl Polanyi (1957). É a melhor definição sociológica do mercado: um laço social que visa escapar das obrigações normais inerentes aos laços sociais. É a essência da liberdade moderna. “Nesse jogo infinito da circulação de equivalências, ser um indivíduo equivale a não dever nada a ninguém.” (Berthoud, 1994, p. 53). A liberdade moderna é, essencialmente, a ausência de dívida. “O par constituído pelo individualismo e a economia neoclássica busca fundar a ética do comportamento do homem sem nenhuma dívida em relação a quem quer que seja. O que justifica a reivindicação dessa teoria de ser reconhecida como o discurso da liberdade.” (Insel, 1994, p. 88).
Em resumo, esse modelo tem força porque constitui uma alternativa à hierarquia imposta. Porque contém um princípio básico de autonomia e liberdade, tão bem descrito e defendido por Hayek, e que a esquerda clássica muitas vezes se recusou, de má vontade, a reconhecer. É certamente uma relação social bastante limitada, um laço fraco, como veremos. E acarreta também exploração, injustiça, exclusão… Sem dúvida. Mas todas as vezes em que alguém pretende não apenas saber melhor do que nós mesmos o que é bom para nós, como também pretende possuir autoridade para impô-lo, em vez de tentar nos convencer, preferimos o mercado. O mercado é um viático contra todos os que conhecem o nosso bem em nosso lugar.
Limites e fraquezas
Existe, porém, um reverso da medalha. Pois essa solução, que a humanidade hoje está disposta a mundializar, é uma solução que as sociedades, inclusive a nossa, não apenas temeram, como também rejeitaram. É o que mostram a antropologia e também a história do Ocidente. Um dos piores insultos lançados contra Ulisses em sua célebre viagem ocorreu quando o filho de Alcinoos, em cuja casa foi recebido, o toma por um comerciante. Como dizem Temple e Chabal (1995, p. 183), “Ulisses rouba, pilha, mata, mas não troca!”. Deve haver uma razão. Na verdade, há várias. Gostaria de enfatizar uma delas.
O paradigma do crescimento
Para tanto, voltemos ao postulado das preferências. Como vimos, é uma teoria dos meios para tomar uma boa decisão, quaisquer que sejam o objetivo ou os valores da pessoa. O modelo é, assim, teoricamente neutro diante dos valores. Ora, o mercado acrescenta uma condição de funcionamento que afeta sua neutralidade quanto aos valores: quaisquer que sejam os valores, devem poder ser transformados em mercadoria, devem assumir a forma de produtos que se coloca no mercado, devem poder ser “mercantilizados”. A liberdade é plena, mas contanto que todos os valores e crenças e paixões sejam traduzidos em demanda de bens (ou serviços) de consumo. E dizer “somos neutros, contanto que vocês consumam, que se inscrevam no modelo produtor-consumidor”, na realidade não é neutro. É isso que a neutralidade das preferências oculta.
Por que essa condição é necessária? Porque existe um valor básico, o crescimento. O moderno tem todas as liberdades quanto às relações sociais, mas não tem a liberdade de não contribuir para o crescimento do PNB, da produção.
Esse modelo tende, portanto, a generalizar um valor, o valor de produto. Se, graças à modernidade, libertamo-nos de nossos laços, por outro lado tornamo-nos cada vez mais dependentes de nossos bens, de nossos produtos e, principalmente, da necessidade de produzir cada vez mais. Em outras palavras, o que era meio (o produto) torna-se fim. Inverte-se a relação fim-meio. O que fora inicialmente definido como estando a serviço das preferências individuais — a produção — acaba sendo o valor supremo, a finalidade. Como isso é possível?
Os meios contaminam o fim
Tal conseqüência é possível justamente porque todo esse modelo da racionalidade instrumental está baseado na distinção fins-meios. Mais precisamente, o modelo se baseia na separação radical das duas ordens, dos meios e dos fins. O problema fundamental é que essa distinção fim-meio não se sustenta. O meio contamina o fim, e assim o transforma em produto mercantil. Mas esse é apenas um caso particular da contaminação geral fins-meios.
Esse não é um modelo adequado à ação humana. Quantas vezes um meio para um fim se torna ele mesmo um fim, a ponto de o fim se tornar secundário? É um fenômeno comum na vida cotidiana. Mesmo nas empresas, isto é, na esfera social que praticamente inventou e desenvolveu o modelo racional, esfera que é a origem da racionalização do mundo, um sociólogo da seriedade de Crozier (1989, p. 200) notou que “o que conta não é o objetivo preciso visado, mas o encaminhamento, o desenvolvimento, as vias a serem abertas.”
É sabido que essa visão linear da ligação entre fim e meios leva o utilitarismo a propor, com Bentham, a felicidade como fim, aplicando-lhe o esquema fins-meios. Mas a sabedoria humana sempre afirmou o contrário, que o método infalível para não atingir a felicidade consiste em buscá-la incessantemente. É isso que o paradoxo dos egoístas infelizes ilustra. Recentemente, um professor de Psicologia pediu a seus alunos que fizessem uma lista de dez nomes de pessoas que eles conheciam muito bem e indicassem se tais pessoas eram felizes, e se eram generosas. Nos 1.988 casos levantados, o resultado é claro: as pessoas consideradas felizes são vistas como generosas em 41,6% dos casos, e as que são consideradas infelizes tendem a ser egoístas. “Os resultados apresentam um paradoxo interessante: pessoas egoístas são, por definição, aquelas cujas atividades são consagradas à obtenção de felicidade para si mesmas. E no entanto, pelo menos aos olhos dos outros, essas pessoas egoístas têm muito menos chances de serem felizes do que aquelas cujos esforços são voltados para tornar felizes os outros.” (Rimland, 1982, p. 522).
O esquema da escolha racional, que parece tão óbvio, na verdade não costuma corresponder à realidade das decisões. Ele não leva em conta o fato de que os meios e os fins influenciam uns aos outros permanentemente, sob o efeito das emoções, dos sentimentos, e dos resultados de uma ação prévia. Esse fenômeno social deve ser analisado não dentro do modelo da hierarquia linear, como o faz a teoria da escolha racional, mas nos moldes daquilo que Hofstadter (1980) chama de “hierarquia encavalada”. Cada decisão é uma aventura, e uma surpresa. O modelo da racionalidade instrumental visa eliminar essa dimensão da decisão. “Por sua própria estrutura, a teoria só se aplica a universos fechados, a mundos que não permitem nem arrependimentos nem surpresas.” (Gérard-Varet e Passeron, 1995, p. 14). Em nome da liberdade, acaba-se por submeter os indivíduos a um modelo mecânico e determinista que não deixa nenhum lugar para o inesperado. Para dar conta dos comportamentos reais, é preciso refletir acerca do nexo entre os objetivos, as intenções e os meios; é necessária uma teoria da relação entre o fim e os meios, que não existe na rational choice theory.
Apesar de todos os atrativos desse paradigma, descritos acima, percebe-se claramente que a racionalidade instrumental está longe de nos dispensar de voltar a atenção para outros paradigmas, ainda que seja unicamente para completá-la.
O outro paradigma
Num certo sentido, toda a Sociologia é um esforço para completar ou criticar esse paradigma economicista. O outro paradigma, desenvolvido principalmente por sociólogos e antropólogos, são as diferentes formas de holismo (Dumont, 1983), termo que designa aqui, em sentido amplo, todas as teorias que falam da sociedade mais do que do indivíduo.
Ilustremos essa abordagem apresentando rapidamente o movimento pela Socioeconomia. Em 1988, o sociólogo e teórico das organizações americano Amitai Etzioni publicou a obra The moral dimensione, no ano seguinte, lançou um movimento pelo que ele chamou de Socioeconomia, o SASE — Society for the Advancement of Socio-Economics. Esse movimento critica o monopólio da economia neoclássica e se apresenta como uma alternativa ao paradigma utilitarista. Sem negar a importância do interesse na explicação dos comportamentos dos agentes sociais, esse “novo paradigma” (“New paradigm” é o título do primeiro capítulo do livro) busca romper o isolamento do indivíduo e situá-lo no contexto de suas relações sociais. É o que Etzioni chama de “paradigma do eu e nós” (“I & We paradigm”, idéia de Baldwin), que significa que cada indivíduo possui um sentimento de identidade compartilhada com os outros. Etzioni tem fórmulas fortes para expressar esse paradigma relacional: “Somos membros uns dos outros” (Etzioni, 1988, p. 5, citação de Baldwin); “A sociedade não é um limite, nem mesmo uma oportunidade, é nós” (idem, p. 9). Esse senso de comunidade iria inclusive levá-lo a fundar, alguns anos mais tarde, a rede comunitarista (Communitarian Network) com o livroThe responsive community (Etzioni, 1993).
Mais especificamente, Etzioni quer reintroduzir, como indica o título, a dimensão moral. Os agentes sociais não agem somente em função de seus interesses, mas também em função de normas, valores. É a natureza moral dos atos que distancia os agentes sociais do paradigma da economia neoclássica. A moral, tal como definida por Etzioni, tem várias características que a opõem ao paradigma da racionalidade instrumental:
Atos morais refletem um imperativo, uma generalização, e uma simetria quando aplicados aos outros […] são intrinsecamente motivados e não passíveis de uma análise meios-fins. […] repudiam a racionalidade instrumental que inclui a consideração de custos e benefícios. […] De fato, a “instantaneidade” de tais decisões é usada por várias pesquisas como uma indicação de que se trata de um compromisso não deliberado. (Etzioni, 1988, pp. 41-43)
Mas ele afirma também que o comportamento moral se distancia da busca do prazer. Etzioni tende a assimilar o prazer ao utilitarismo. Opõe prazer e ato moral, prazer e senso do dever. Essa inclusão do prazer no modelo utilitarista dominante e essa insistência no dever fazem com que o modelo socioeconômico abra brechas para a crítica dos defensores do paradigma dominante, em nome da liberdade. Etzioni afirma que o sentido do dever não é uma imposição externa ao indivíduo (idem, p. 46). São normas “interiorizadas”. Ele define a interiorização como o processo de socialização através do qual uma pessoa aprende a “conformar-se às regras em situações que suscitam impulsos de transgressão e carecem de vigilância e sanções” (idem, p. 45, citação de Kohlberg). De qualquer modo, trata-se de se conformar, de obedecer a regras.
A Socioeconomia consiste em mostrar que o interesse não explica tudo, que existem também as normas, as regras, os valores, a moral, o dever. Mas tais normas tendem a ser concebidas como obrigações externas, constrangedoras do indivíduo. O que gera, imediatamente, a vontade de descartá-las e de voltar-se para o paradigma dominante. É o problema clássico da interiorização das normas, central em Sociologia. A Socioeconomia esbarra no problema mais importante dos modelos sociológicos em relação ao paradigma dominante, o da liberdade em face do controle social.
Conclusão
Se nos ativermos a esses dois paradigmas, seremos levados a crer que as ciências sociais se encontram diante do seguinte dilema: ou o comportamento é livre, mas obedece ao modelo da racionalidade instrumental, ou o comportamento é mais ou menos limitado ou determinado por normas,2 pela obediência a regras.
Dessa dicotomia decorre que todos os comportamentos atinentes ao paradigma da escolha racional são considerados como sendo livres. Agora eu gostaria de mostrar que nenhum desses dois paradigmas pode dar conta da dádiva.
A dádiva
Há, atualmente, um certo número de pessoas trabalhando acerca da dádiva, considerada um fenômeno importante ou princípio de base de um modelo sociológico, ou até mesmo um novo paradigma. Na França, existe um agrupamento em torno daRevue du MAUSS(Mouvement Anti-Utilitariste des Sciences Sociales), dirigido por Alain Caillé. A dádiva ainda não é um paradigma, e talvez nunca chegue a sê-lo. Contudo, eu gostaria, inicialmente, de defender a idéia de que a dádiva desafia os dois grandes paradigmas existentes nas ciências humanas, que acabei de apresentar resumidamente.
Mas, antes de abordar esse tema, uma palavra acerca desse “fenômeno social total”, como dizia Marcel Mauss. O que é a dádiva? De modo negativo, entende-se por dádiva tudo o que circula na sociedade que não está ligado nem ao mercado, nem ao Estado (redistribuição), nem à violência física. De modo mais positivo, é o que circula em prol do ou em nome do laço social.
Não é um fenômeno irrelevante. Basta pensar no que circula entre amigos, entre vizinhos, entre parentes, sob a forma de presentes, de hospitalidade e de serviços. Na sociedade moderna, a dádiva circula também entre desconhecidos: doações de sangue, de órgãos, filantropia, doações humanitárias, benevolência etc. Como esses fenômenos sociais se situam em relação aos dois paradigmas apresentados acima? É examinando algumas características e algumas regras da dádiva que se pode responder a essa pergunta.3
Não corresponde ao modelo mercantil
Uma primeira característica de um sistema de dádiva consiste no fato de que os agentes sociais buscam se afastar da equivalência de modo deliberado. Isso não significa que a dádiva seja unilateral. Pode sê-lo, mas essa não é uma característica essencial sua. Geralmente, ao contrário, há retribuição, e muitas vezes maior do que a dádiva. Mas a retribuição não é o objetivo. É um equívoco aplicar a ela o modelo linear fins-meios e dizer: ele recebeu depois de ter dado, portanto deu para receber; o objetivo era receber, e a dádiva era um meio. A dádiva não funciona assim. Dá-se, recebe-se muitas vezes mais, mas a relação entre os dois é muito mais complexa e desmonta o modelo linear da racionalidade instrumental.
Por que esse distanciamento deliberado do modelo fins-meios e da busca da equivalência?
Vimos que o mercado se baseia na liquidação da dívida. A dádiva baseia-se, ao contrário, na dívida. Isso pode ser observado tanto nos laços primários como nas relações de parentesco, na doação a um desconhecido, na doação de órgãos.
A dívida deliberadamente mantida é uma tendência da dádiva, assim como a busca da equivalência é uma tendência do modelo mercantil. Os parceiros num sistema de dádiva ficam em situação de dívida, negativa ou positiva. Se for uma situação positiva, significa que consideram que devem muito aos outros. Não é uma noção contábil. É um estado, no qual cada um considera que, em termos gerais, recebe mais do que dá. O sistema da dádiva se situa, assim, no pólo oposto ao do sistema mercantil. Não porque seja unilateral, o que não é, mas porque o que caracteriza o mercado, como vimos, é a transação pontual, sem dívida, ao passo que a dádiva busca a dívida.
Não corresponde ao paradigma holista
Então, dirão, se esse sistema mantém, sob a forma de dívida, a obrigação na relação, corresponde ao modelo holista. Constata-se, contudo, que tampouco é possível aplicar o paradigma holista à dádiva. Nem de modo geral, sob a forma do modelo da Socioeconomia que apresentamos rapidamente, devido às seguintes características suplementares do fenômeno da dádiva.
Em primeiro lugar, os atores valorizam o prazer na dádiva. Uma dádiva feita por obrigação, por obediência a uma norma, é considerada de qualidade inferior. A moral do dever não se aplica à dádiva. Vimos que ela era fundamental para a Socioeconomia. Além disso, a relação da dádiva com as regras torna-a diferente do paradigma holista, e igualmente do modelo individualista. Pois os membros de um sistema de dádiva possuem uma relação muito particular com as regras. Antes de mais nada, as regras devem estar implícitas. Por isso, é de muito mau gosto deixar o preço num presente, ou aludir a ele.
Além disso, existe uma tendência geral entre os atores de negar a obediência a regras no comportamento da dádiva. Essa tendência chega até mesmo a negar a importância da própria dádiva. Este é um dos mais estranhos comportamentos da dádiva, à primeira vista: a negação da importância da dádiva por parte do doador. Mauss observa, assim, que nokula”dá-se como se não fosse nada” (apud Karsenti, 1994, p. 28). “O doador dá mostras de uma modéstia exagerada”, diz ele. Mas não é preciso ir tão longe. Nossas fórmulas de gentileza têm o mesmo sentido: de nada, de rien, di niente, de nada, my pleasure, garantem os doadores a quem lhes agradece pela dádiva que fizeram. Por quê? Chegamos à conclusão de que, desse modo, eles diminuem a obrigação de retribuir e tornam a retribuição incerta. Tornam o outro livre para dar por sua vez. Se aquilo que se lhe deu não é nada, ele não fica obrigado a retribuir, fica livre para dar; e se der, será também uma dádiva de verdade. Dá-se assim ao receptor a possibilidade de fazer uma verdadeira dádiva, em vez de se conformar à obrigação de retribuir. Como tão bem notou Lefort, “não se dá para receber; dá-se para que o outro dê”. Constata-se, desse modo, que os atores da dádiva introduzem, deliberada e permanentemente, uma incerteza, uma indeterminação, um risco quanto à efetivação do contradom, de modo a se afastarem o máximo possível do contrato, do comprometimento contratual (mercantil ou social), e também da regra do dever; na verdade, de qualquer regra de tipo universal. Por quê? Porque estas útlimas têm a propriedade de obrigar o outro independentemente de seus “sentimentos” em relação a mim, independentemente do elo que existe entre o outro e eu.
Existe, portanto, liberdade na dádiva, e uma relação muito diferente para com a “dimensão moral” de que fala Etzioni. Mas não é o mesmo tipo de liberdade que existe no mercado. A liberdade que se percebe aqui não se realiza na liquidação da dívida e não consiste na facilidade, para o ator, de sair da relação; situa-se, ao contrário, dentro do laço social, e consiste em tornar o próprio laço mais livre, multiplicando os rituais que visam diminuir, para o outro, o peso da obrigação no seio da relação. A dádiva é um jogo constante entre liberdade e obrigação. A maior parte das características da dádiva torna-se compreensível quando se as interpreta segundo o princípio da liberdade dos atores.
Dádiva e modelo sociológico
Esse sistema social é, portanto, diferente tanto do paradigma dominante quanto do modelo holista. Na verdade, essa valorização da liberdade do outro o torna, inclusive, diferente da maior parte dos modelos sociológicos. Para ilustrar esse ponto, tomemos o exemplo da análise estratégica, sistema de ação bem conhecido na sociologia das organizações. Comparemos rapidamente esses dois sistemas sociais, dádiva e análise estratégica.
No contexto da análise estratégica, considera-se que cada ator, para aumentar seu poder e seu controle sobre a organização, tenta reduzir o que é chamado de “sua zona de incerteza”. Para o sociólogo Michel Crouzier, o homem é dotado de um “instinto estratégico” que o leva a reduzir as incertezas nas situações de interação, de modo a aumentar seu poder (Friedberg, 1993, p. 210). Reduzir a zona de incerteza significa reduzir a liberdade do outro para aumentar a sua própria. Ora, a observação da circulação da dádiva leva a crer que um agente social também é levado, em certas relações sociais, não a reduzir mas, ao contrário, a criar e manter zonas de incerteza entre ele e outrem, para aumentar o valor dos laços sociais que lhe são caros. Nessa relação de dádiva, o ator procura, em vez de limitar a liberdade alheia, aumentá-la, pois ela constitui a condição prévia do valor que ele irá reconhecer no gesto do outro. Digo que tende a aumentar a incerteza porque tende permanentemente a reduzir no outro qualquer sentimento de obrigação, ainda que as obrigações nunca deixem de existir. O ator de um sistema de dádiva tende a manter o sistema num estado de incerteza estrutural, para permitir que a confiança se manifeste. Por isso as normas, quaisquer que sejam (justiça, igualdade etc.), devem ser continuamente transgredidas, modificadas, superadas. É preciso que algo de imprevisto ocorra no que é obrigatório. Estamos diante de duas lógicas: a da análise estratégica, que leva os atores a reduzirem a liberdade de outrem, e a da dádiva, que tende a aumentá-la. Não são características individuais, são as de dois sistemas sociais. Aliás, já se observou diversas vezes que são as mesmas pessoas, nos dois casos, que se adequam a um ou outro modelo, dependendo do sistema de ação no qual se encontram com os outros agentes. São as propriedades dos sistemas de dádiva que não se encontram na lógica da análise estratégica ou nos sistemas de ação que ela estuda. Claro está que todos esses sistemas são tipos-ideais, e a análise de um sistema social concreto qualquer apresenta uma mistura variável desses diferentes modelos. Mas num sistema social cuja norma de referência é a dádiva encontraremos esses elementos que acabo de descrever.
A dádiva como sistema de ação
Sciulli (1992, p. 161) afirma que “a grande força da teoria da escolha racional é que enquanto seus enunciadores procuram dar conta da ordem social e da solidariedade de grupo, resistem o quanto podem sem apelar para uma suposta interiorização de normas compartilhadas por parte dos atores”. Como a teoria da escolha racional, o modelo da dádiva considera suspeitas as normas obrigatórias que se impõem aos atores como fatores explicativos. Sob esse prisma, a dádiva apresenta um parentesco evidente com aquela teoria. Mas dela também se afasta muito, pois a liberdade acaba sendo mais importante aqui do que no próprio modelo econômico, já que o modelo da dádiva é o único sistema de ação que incita seus membros a aumentarem a liberdade dos outros. Ademais, permanece profundamente diferente do modelo da escolha racional porque está baseado na dívida e não reconhece o postulado fundamental do homo oeconomicus, a saber, de que o único motor natural da ação humana é o interesse. Como todo modelo sociológico, o modelo da dádiva precisa de uma teoria psicológica, e neste aspecto difere da teoria da escolha racional. Ele não parte do homo oeconomicus.
Esse modelo não se liga, portanto, a nenhum dos dois paradigmas dominantes. A não equivalência, a espontaneidade, a dívida, a incerteza buscada no seio da relação se opõem à teoria da escolha racional e ao contrato. Mas o prazer do gesto, a liberdade, se opõem às normas interiorizadas do modelo holista, se opõem à moral do dever.
A dádiva obriga a sair desses dois paradigmas, holista e individualista, e a buscar outra coisa. Por isso eu dizia que a dádiva coloca problemas para os dois paradigmas. Nos termos de Elster, poderíamos dizer que a dádiva coloca em relevo os “vícios” dos dois paradigmas tradicionais nas ciências sociais: “Se o vício dos economistas é o de tudo perceber em função dos interesses, o vício sociológico é o de ver no homem o executante passivo das normas sociais.” (Elster, 1995, p. 144).
Mas, podemos dar um passo adiante? Vimos que um dos dois paradigmas possui um privilégio paradigmático. Gostaria de sugerir, para concluir, que a dádiva não só não pode ser explicada pelos dois paradigmas existentes em ciências humanas, como também recoloca em causa o privilégio paradigmático de um dos dois paradigmas, o da teoria da escolha racional. Por quê?
Com o individualismo e o holismo, dispomos aparentemente de dois princípios de explicação da ação humana: o interesse e a interiorização das normas. Mas existem, realmente, dois princípios? Por que é absolutamente necessário postular que os comportamentos cujo móvel não é o interesse devem ser aprendidos, interiorizados? Colocando essa questão, voltamos ao problema do privilégio paradigmático do modelo do interesse. Pois se devemos supor que todo comportamento não regido pelo modelo do homo oeconomicus precisa ser interiorizado pelos agentes sociais é porque, afinal, postulamos que só o interesse é natural, só o interesse não precisa ser aprendido, só o interesse não requer explicação. Na verdade, o privilégio paradigmático do homo oeconomicuse o fato de o outro paradigma estar de certo modo condenado a pensar o ator social como “executante passivo das normas sociais” são a mesmíssima coisa. Pois é porque não se reconhece senão um móvel real da ação humana — o interesse — que todo modelo que sai do interesse se vê diante do problema insolúvel da interiorização das normas, já que elas não podem ser naturais. Apenas o interesse goza desse privilégio de ser natural em ciências humanas.
Ora, o modelo da dádiva não se satisfaz nem com o postulado do interesse nem com o da interiorização das normas. Eis por que a dádiva não apenas provoca questionamentos mas também, em sua forma mais radical, coloca em questão o privilégio paradigmático do interesse e obriga a postularmos um outro impulso psicológico para as ações humanas, e a estabelecê-lo como postulado no mesmo nível que o interesse. Ao lado do interesse, o “atrativo do ganho”, a análise da dádiva leva a postular o “atrativo da dádiva”.
Para assumir tal postulado, é necessário inverter nosso modo habitual de pensar e imaginar, por um instante, que se sentimos necessidade de crer que qualquer comportamento de dádiva é resultado de uma aprendizagem, de normas interiorizadas, talvez seja porque nós, modernos, fomos socializados para pensarmos assim. Pessoalmente, estou cada vez mais convencido de que o atrativo do ganho como único motor da ação humana não tem nada de evidente e que o atrativo da dádiva não é tão esdrúxulo. Termino com algumas reflexões acerca desse tema.
Liberdade e obrigação
Refletir acerca da dádiva é, na verdade, tentar compreender o que é uma obrigação social ou moral. A relação com a obrigação é o fulcro, o núcleo da dádiva, praticamente impossível de observar diretamente, em seu próprio movimento, pois se a percebe sempre enrijecida, petrificada, paralisada sob a forma de regra social, legal, convencional, tradicional, racional. Em outras palavras, observa-se sempre a obrigação sob forma institucional, sob forma de regra, que consiste em fornecer uma razão externa para a ação, em encontrar uma causa para o movimento espontâneo da alma que faz com que se tenha tendência a dar e a retribuir, movimento sem o qual nenhuma sociedade pode existir. É claro que também se dá por convenção, por obrigação estrita, por interesse, e por uma mistura de tudo isso, além de outras razões. Mas isso é uma degradação da dádiva, de que permanece apenas a casca, sem o conteúdo, sem o sentido. A “verdadeira” dádiva é um gesto socialmente espontâneo, um movimento impossível de captar em movimento, uma obrigação que o doador dá a si mesmo, mas uma obrigação interna, imanente.
Muitas vezes ela se transforma em obrigação externa, e o próprio doador pode fazer isso. Trata-se de uma perversão bastante freqüente nesse movimento. Poucas pessoas são suficientemente fiéis aos próprios sentimentos para obedecer a esse movimento sem transformá-lo de algum modo em regra, em obrigação externa. Alguns tendem inclusive a transformar em obrigação qualquer movimento espontâneo em direção aos outros. Assim, a idéia de telefonar a uma amiga, que surge inicialmente de modo agradável e espontâneo, pode se transformar progressivamente numa auto-imposição de telefonar; uma obrigação interior se torna um dever, parece então imposta de fora. “Devo telefonar”, acabamos dizendo a nós mesmos. O jogo com a regra está constantemente presente dentro da própria pessoa, e a dinâmica da dádiva se situa dentro desse jogo. Com algumas pessoas acontece de todas as relações assumirem essa forma, não importa o que se faça. Então, não se é mais capaz de dar realmente, mas apenas de simular a dádiva. Cada movimento da alma se encontra, a partir de então, imediatamente preso e enrijecido dentro da lógica da obrigação exterior; toda dávida se torna um dever.
A obrigação moral é um problema filosófico. Mas foi também um problema para todos os grandes sociólogos, especialmente para Durkheim. Não há dúvida de que nossa relação com a sociedade passa por laços contratuais e por normas exteriores, como a da justiça e a do dever. Mas esses laços não são suficientes, nem os mais fundamentais, acreditava Durkheim (1992, pp. 615-616): “O filósofo Kant tentou […] identificar a idéia de bem à idéia de dever. Mas essa é uma identificação impossível […] É preciso que a moral nos pareça amável […], que fale aos nossos corações e que possamos segui-la mesmo em momentos de paixão. Ao agirmos moralmente, elevamo-nos acima de nós mesmos […] Há algo que nos ultrapassa […] de certo modo saímos de nós mesmos”.
Essa descrição corresponde perfeitamente à experiência da dádiva tal como descrita pelos agentes sociais. Qualquer que seja o tipo de dádiva, encontramos essa estranha relação com a regra, esse paradoxo da obrigação de ser livre, da obrigação de ser espontâneo, que faz com que a dádiva seja fundamentalmente diferente do mercado e do Estado. O mercado e a seguridade social (Estado-provedor) são duas invenções formidáveis, que não há por que renegar, pois aumentaram a segurança material, diminuíram as injustiças e concederam direitos a todos os membros da sociedade. Não se pode negar o progresso trazido por essa idéia de solidariedade social que passa pelo Estado, fundada na justiça e não na caridade. O Estado e o mercado são, também, muito práticos, sobretudo quando não se deseja que as relações sejam pessoais. A dívida mercantil é, nesses casos, preferível à dívida da dádiva.
Mas tais instituições são insuficientes em nossas relações com aqueles que realmente importam na vida de cada um, às vezes até em certas relações com estranhos, porque o mercado e o Estado são duas instituições neutras, que não alimentam nossas relações sociais. São exteriores aos laços com as pessoas que nos são caras e, principalmente, não são livres como a dádiva. Por isso, em relação às pessoas que importam, gostamos de fazer com que as coisas passem pela dádiva, gostamos de fazer e dar por prazer, confiantes de que não sairemos perdendo. Dar com a certeza de que não sairemos perdendo é a base de toda sociedade. Se essa certeza não existe, não há sociedade possível. É a luta contra o determinismo, contra a necessidade. “Você não devia, não precisava…”, é o que dizemos a quem nos dá algo, libertando assim o ato da ordem da necessidade. É o oposto do que dizemos a um funcionário: “O senhor é obrigado a fazer isso para mim, é um direito meu”. A dádiva se opõe, portanto, aos sistemas mecanicistas e deterministas e se aproxima da vida. A dádiva é o estado de uma pessoa que, resistindo à entropia, transcende a experiência mecânica determinista da perda ligando-se à experiência da vida, ao aparecimento, ao nascimento, à criação.
Existe uma tensão permanente entre o estado da dádiva e sistemas mais mecanicistas como o Estado e o mercado. Estes últimos sempre pretendem sujeitar a circulação das coisas à sua própria lei, a da equivalência mecânica, a da necessidade, tão mais confortável que a liberdade. A dádiva também pretende sujeitar os outros sistemas à sua lei, que consiste em liberar a troca e fazer surgir algo imprevisto, fora das regras. Um último exemplo simples ilustrará essa idéia. Paga-se por um espetáculo. Em troca o artista apresenta seu espetáculo. É a inserção de uma troca humana na equivalência monetária. Mas constata-se que isso não basta. Se algo realmente “passou” na noite do espetáculo, os espectadores aplaudem, manifestam-se para além do pagamento. Dão algo ao artista, algo a mais, um suplemento situado fora do sistema de mercado. Em contrapartida, o artista oferece um “bis”, dá aos espectadores algo não previsto, independente de contrato, isto é, livremente. Cria ou mantém um laço vivo entre ele e os espectadores. Ele não é “obrigado” a fazer o “bis” pelo contrato que o liga aos espectadores que pagaram. Não é uma obrigação. Mas pode tornar-se uma, com o tempo, o hábito, a repetição. O sistema normativo e institucional sempre tende a integrar esse “a mais” introduzido pela dádiva, reduzindo-o a uma troca eqüitativa. Mas então tende-se a inventar outra coisa, a escapar continuamente daquilo que se fixa, que se normatiza. Enquanto a relação entre os protagonistas for viva, haverá nela essa tendência de fugir das equivalências mecânicas, calculáveis, através de “extras” que o sistema, por sua vez, tenderá a normatizar, contratualizar, tornar necessários. Nessa resistência, a relação mostra que está viva e que, portanto, gera algo. Se a equivalência vence, é o fim da vida nesse sistema. Isso não o impedirá de ser um sistema mecânico bem montado e deveras útil, mas algo já não circula mais entre os seus integrantes: o espírito, a vida, a criação, a dádiva.
Assim, cada dádiva é a repetição do nascimento, da chegada da vida; cada dádiva é um salto misterioso para fora do determinismo. Por isso a dádiva é freqüentemente acompanhada de uma certa sensação de euforia e da impressão de participar de algo que ultrapassa a necessidade de ordem material. Por isso tal experiência desmonta o modelo linear fins-meios apresentado no início e conduz a questionamentos quanto aos limites da própria distinção entre fins e meios, entre as intenções e os resultados. Chega-se à idéia de que, na dádiva, além de não se querer a retribuição, nem sequer se deseja a própria dádiva: pode-se dizer que ela vem naturalmente. A dádiva vem por si mesma, dá-se a si mesma. Finalmente, não é o sujeito que dá; o sujeito segue a dádiva, é levado por ela. A dádiva seria uma experiência em que a distância entre fins e meios é abolida, em que não há mais fins e meios, mas um ato que preenche o espaço de significação do sujeito e faz com que sejamos ultrapassados pelo que passa por nós, e pelo que se passa em nós. A dádiva seria uma experiência de abandono à incondicionalidade, experiência de pertencer a uma comunidade que, longe de limitar a personalidade de cada um, ao contrário, a expande. Contrariamente a uma visão individualista, a experiência da solidariedade comunitária não contradiz necessariamente a afirmação da identidade e pode, ao contrário, desenvolvê-la (Donati, 1995). A dádiva seria, assim, uma experiência social fundamental no sentido literal, de experiência dos fundamentos da sociedade, daquilo que nos liga a ela para além das regras cristalizadas e institucionalizadas como normas da justiça. Sentimo-la passar em nós, o que cria um estado psíquico especial. É o que Mauss chamava um fato social total. Uma experiência que concretiza a tensão entre indivíduo e sociedade, entre liberdade e obrigação, como mostra Karsenti (1994). Uma experiência em que a sociedade é vivida como comunidade.
A espontaneidade da dádiva é a realização de uma longa aprendizagem voluntária. Assemelha-se à espontaneidade do meste zen, cujo gesto surge de um longo período de concentração. “Abandona qualquer intenção, exercita-te à ausência de intenção e deixa que as coisas se façam pelo Ser”, diz um mestre zen,4 aproximando-se, assim, de Jean-Paul Sartre (1983, pp. 383 e 434):
[A dádiva] existe, portanto, se surge no universo do desejo, libertação do universo do desejo. […] Se considerarmos o puro universo do desejo, em que o homem é o inessencial e a coisa o essencial, a dádiva aparece,em sua intenção primeira, como inversão dessa estrutura e, conseqüentemente, libertação: já não estou mais ali para atualizar a coisa pelo consumo, mas se dou, é a coisa que está ali para ser transmitida ao outro. […] O Ego está para se perder: é a dádiva. A reconciliação com o Destino é a generosidade.
Invertendo a perspectiva
Por que se dá? Se admitirmos o que precede, a resposta é simples: para se ligar, para se conectar à vida, para fazer circular as coisas num sistema vivo, para romper a solidão, sentir que não se está só e que se pertence a algo mais vasto, particularmente a humanidade, cada vez que se dá algo a um desconhecido, um estranho que vive do outro lado do planeta, que jamais se verá. Por isso eu dizia que a dádiva é o que circula a serviço do laço social, o que o faz aparecer, o alimenta. Desde os presentes para os amigos e familiares até a doação por ocasião de grandes catástrofes naturais, a esmola na rua, a doação de sangue, é fundamentalmente para sentir essa comunicação, para romper o isolamento, para sentir a própria identidade.5 Daí o sentimento de poder, de transformação, de abertura, de vitalidade que invade os doadores, que dizem que recebem mais do que dão, e muitas vezes do próprio ato de dar. A dádiva seria, então, um princípio consubstancial ao princípio vital, aos sistemas vivos.
Assim, somos levados a nos perguntar se não seria interessante questionar o privilégio paradigmático do homo oeconomicus, do atrativo do ganho. Em vez de partirmos do atrativo do ganho, postularíamos o atrativo da dádiva. Estabeleceríamos o postulado de que os seres humanos têm primordialmente vontade de dar. Se a dádiva tiver o estatuto de postulado, a questão a ser colocada a seu respeito não será mais aquela que se costuma fazer: o que é que faz com que demos, apesar de sermos fundamentalmente egoístas, receptores, apesar de sermos basicamente movidos pelo desejo do ganho? A questão seria invertida, e passaria a ser: o que nos impede de dar? O que faz com que certas pessoas não dêem, ou dêem pouco? Ou, o que faz com que, em determinadas circunstâncias, não se dê, ao passo que em outras se é mais inclinado a dar?
Inverte-se o sentido da pergunta, e isso não é pouco. Se pudesse ousar fazer uma analogia, lembraria o que ocorreu na Física no momento em que se deixou de indagar por que os corpos se moviam. Durante séculos, a questão foi saber qual força fazia com que os corpos se movessem, apesar de uma então suposta tendência natural à inércia, à imobilidade. Os corpos, contudo, se movimentam. Qual é, então, a força que faz com que se movam? Durante séculos a questão era colocada assim. Um dia, porém, um físico a inverteu, e postulou que a tendência dos corpos, uma vez em movimento, era prosseguir eternamente em movimento, se nada os fizesse parar. Então, ele formulou a pergunta oposta: o que faz com que o movimento cesse? Que resistência os corpos encontram, que acaba os fazendo parar? E foi porque a questão foi invertida que se descobriram as grandes leis do movimento. Postulando o atrativo da dádiva no lugar do atrativo do ganho, opera-se uma inversão comparável, e a questão passa a ser: o que impede os membros de uma sociedade de dar? O que freia o atrativo da dádiva? O que faz com que se resista à dádiva, com que se retenham as coisas, em vez de fazê-las circular? Colocando a questão desse modo, abandonaremos uma posição exclusivamente defensiva em relação ao paradigma dominante, sem negarmos o postulado do interesse. E talvez possamos compreender melhor as leis da circulação das coisas entre os humanos.
NOTAS
1 Note-se que o interesse não se confunde com a utilidade no sentido estrito. As preferências podem ser de qualquer natureza, e não precisam ser úteis. O inútil é, aliás, o domínio privilegiado do mercado, quando comparado à economia pública. Ogadget, o produto de cor diferente, a aparência, tudo é legítimo para o mercado. O mercado inclusive deslocou progressivamente seu campo de atividades do útil para o inútil. (O útil não aumenta suficientemente o PNB.) Fica à espreita das mínimas “paixões”, para satisfazê-las, principalmente aquelas que as normas oficiais rejeitam, o que lhe outorga o “monopólio” delas. A razão mercante adere ao princípio de Hume: “reason is, and ought only to be, the slave of the passions” (apudElster, 1995, p. 140). As paixões, em todos os sentidos, fazem parte das preferências, e o mercado se abstém de julgá-las.
2 Ou ainda por reflexos. Assim, segundo Gérard-Varet e Passeron (1995, p. 17), tem-se, de um lado, as ações às quais se pode aplicar a noção de racionalidade, e que têm “em comum o fato de sempre suporem — e exigirem, para terem sentido — que uma escolha seja oferecida aos atores […]” e, do outro, um campo da ação humana onde a noção de escolha não se aplica, não é pertinente. “Um comportamento pode ser instintivo, impulsivo, reflexo, repetitivo etc., em suma, moldado por todas as espécies de determinações.”
3 Essas características provêm de resultados de pesquisas acerca da dádiva realizadas ao longo dos últimos cinco anos, especialmente nas redes de parentesco (Godbout e Charbonneau, 1996) e sobre doação de órgãos (Godbout, 1996).
4 Citado pelo filósofo alemão Karlfreid Graf Dürckheim (1976, p. 136).
5 “O ascetismo (negação da gratificação com o objetivo de validar a si mesmo — a marca registrada da ética protestante) e o narcisismo têm muito em comum. Em ambos, mostrar aos outros os controles e impulsos dos próprios sentimentos é um meio de mostrar que se tem, de fato, valor. Em ambos, há uma projeção de si no mundo, em vez de um envolvimento na experiência do mundo que esteja fora do controle do sujeito.” (Sennett, apudJon Van Til, 1988, p. 33; grifos meus).
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